Por Milton Coelho, deputado federal (PSB-PE), advogado e auditor do Tribunal de Contas de Pernambuco
Em maio deste ano, o Congresso evitou mais um disparate do governo federal, fixando grande conquista: transformou o benefício temporário do Auxílio Brasil em permanente. Temos hoje R$ 89 bilhões para essa transferência de renda e, ainda assim, mais de 750 mil famílias estão na fila da miséria à espera de atendimento. Isso deixa claro que o expressivo salto orçamentário foi acompanhado de um péssimo desenho de programa social, cuja correção será tão urgente quanto difícil.
Foi fundamental manter o orçamento integral da transferência de renda: se o benefício temporário acabasse em dezembro, mais de 50 milhões de brasileiros mergulhariam na miséria no alvorecer do próximo ano. Além disso, seu anunciado fim poderia ser usado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) como manobra para chantagear os mais pobres durante o processo eleitoral. Fixando sua permanência, evitamos esses prejuízos e nos colocamos em linha com as várias pesquisas que demonstram os efeitos positivos do investimento em programas de transferência de renda aos mais pobres: auxiliam no combate à pobreza, não geram indisposição ao trabalho decente e melhoram as condições de saúde e educação de nossas crianças e adolescentes. São um tipo de gasto social favorável ao crescimento econômico e à diminuição da desigualdade.
Os R$ 89 bilhões não são excessivos: significam que dedicamos 1% do nosso PIB à transferência que atende os 25% mais pobres da população brasileira. Embora estejamos ainda distantes do gasto médio em proporção do PIB com esses programas entre os países da OCDE (2,5%), somos o primeiro do ranking na América Latina. E, mesmo assim, as filas de miseráveis crescem, pois muito dinheiro se torna pouco nas mãos de um Poder Executivo incompetente.
O governo poderia ter optado por fixar o novo benefício considerando os números recentes de evolução da pobreza e aliando o diagnóstico ao orçamento disponível. Mas o presidente determinou a criação de um piso mínimo de R$ 400 por família, que desconsidera a situação de pobreza e a composição familiar.
Assim, uma pessoa pobre morando sozinha recebe R$ 400, tal como uma mãe com três crianças pequenas. Ou seja, quem mora sozinho terá R$ 400 para si, e a mãe com três crianças, R$ 100 para cada. Essa iniquidade demanda que um próximo governo altere o desenho do programa logo nos primeiros meses de sua gestão. Definir um valor de benefício por pessoa, mesmo variável conforme a idade, é um modo de resolver a questão.
Mas a correção tende a se complicar por alguns fatores. Inicialmente, pelo próprio custo político da revisão, pois diversas famílias podem ter diminuição do valor transferido. Além disso, porque o piso de R$ 400 tem, ao que tudo indica, incentivado o desmembramento de famílias —no atual cenário de carestia e empobrecimento, pessoas morando juntas buscam fazer o cadastro como se vivessem separadas, de forma a majorar o benefício. Soma-se a esses a abertura de que até 40% do benefício sirva de margem consignável para empréstimos.
Não vamos aqui questionar a necessidade do acesso a crédito pelos mais pobres, mas sim o uso do Auxílio Brasil como margem consignável. O benefício é passível de interrupção de pagamento se as crianças estão fora da escola ou se a família estiver com o cadastro desatualizado. Nessas situações, pessoas que mal conseguem se alimentar dignamente terão de arcar com a prestação do empréstimo mesmo sem o benefício. E, se a adesão ao consignado for expressiva, a revisão do piso de R$ 400 terá de ser muito cuidadosa a fim de não comprometer ainda mais a renda dessas famílias.
Será função de um novo governo democrático redesenhar o Auxílio Brasil, transformá-lo em direito e evitar a corrosão de seu orçamento pela inflação. Assim como será garantir que o programa social não seja só um benefício monetário e se articule com uma rede de proteção e promoção social, como fazia o Bolsa Família. São tarefas complexas, mas essenciais para que nossa política de transferência de renda volte aos racionais trilhos da equidade.
Artigo publicado na Folha de S.Paulo em 07/06/2022